quarta-feira, fevereiro 6

Quénia... meu querido Quénia!

Agora que a situação do Quénia saiu dos ecrãs mediáticos (já não há tanta confusão como no mês passado, mesmo que todos os dias continuem a morrer pessoas), creio ser oportuno ir mantendo informações sobre a situação neste espaço.
Inicio com um texto traduzido da revista Nigrizia de Fevereiro 2008, escrito pelo actual Provincial do Quénia dos Missionários Combonianos. Neste texto faz uma análise de como tudo surgiu, os interesses politicos diabólicos em jogo, a importância da estabilidade do Quénia para toda esta região da África e por onde caminhar para resolver a situação.


O fim de uma ilusão!
Quénia, reconstruir a democracia!
Mariano Tibaldi (Sup. Provincial dos MCCJ no Quénia)
Nigrizia , Fevereiro 2008
A violência pós-eleitoral no Quénia pôs por terra a ideia de um país estável, um posto seguro numa região turbulenta. Mas os sinais da crise já se percebiam ainda antes do dia das eleições. Bastava lê-los. Prevaleceu, no entanto, o silêncio. Mesmo o silêncio da Igreja, ela mesma vítima de divisões étnicas.

A violência incontrolada pós-eleitoral no Quénia, deveria ser já esperada. Resultado de uma campanha eleitoral conduzida na base das diferenças étnicas e do recuperar o poder a todo o custo. A questão não é só quem teria cometido sérias ilegalidades nas eleições, mas sim uma política militante que sempre se nutre do encontro étnico, do nepotismo, da solidariedade tribal para recuperar o poder e a riqueza. O conflito étnico como método de intimidação político não é só de hoje. Tem sido usado sistematicamente desde 1992, sempre em tempos eleitorais. Experimentamo-lo nas legislativas de 1992, de 1997 e de 2007. Só as eleições em 2002 escaparam. Mas comparando com as eleições passadas, as de 2007 testemunham maior violência, depois do dia das eleições a 27 de Dezembro passado, com várias regiões do país envolvidas.
Quando a frustração, a miséria, a esperança sistematicamente defraudada dos pobres se misturam com o tribalismo – e portanto tocam na esfera do irracional – tudo se torna ainda mais difícil de resolver. Os políticos que usam a carta tribal, através do uso sistemático da violência e da intimidação – empregando sob a seita dos mungiki (surgida entre os kikuyu numa base étnica e religiosa, mas agora transformada numa verdadeira associação mafiosa), seja dos jovens desempregados dos bairros de lata – terão que responder diante do tribunal da história.
Deveríamos esperar esta crude renascença do tribalismo da pior espécie. A contagem das vitimas e dos refugiados muda dia para dia. As fontes oficiais falam de 600 mortos, enquanto que se contam mais de 250 mil refugiados e deslocados (nota do trad.: a 5/02/2008 contam-se já 1000 mortos e cerca de 304 mil refugiados e deslocados). O episódio mais brutal, entre aqueles conhecidos, foi o incêndio de uma igreja, no dia 1 de Janeiro em Eldoret, no noroeste do país. Teriam sido mortas 50 pessoas – segundo o Daily Nation (jornal queniano) . sobretudo de mulheres e crianças, pertencentes, segundo parece, ao grupo étnico dos kikuyus, o grupo étnico do presidente Mwai Kibaki. Este não hesitou em falar, nos dias seguintes aos confrontos, de genocídio consumado aos seus da sua etnia. Esta mesma acusação foi feita pelo próprio Raila Odinga, o outro contestante da presidência: ele usou o termo genocídio – com ressonâncias mediáticas muito fortes, depois do Ruanda – para descrever o comportamento da polícia contra os do seu grupo étnico, os luo. Muitos mortos confirmados em Kisumu, a cidade mais importante da “Luoland” (região dos Luo), parecem ter sido provocados pelos disparos da polícia. Como sempre, também há gente a usar os meios de comunicação de um modo prejudicial e imoral. Naturalmente, como diz um provérbio africano, quando dois elefantes lutam entre si, é sempre a erva a arcar com as consequências. As verdadeiras vitimas desta violência é a gente simples.

As eleições
No entanto, para os observadores internacionais, o processo eleitoral foi ordenado e exemplar, pelo menos no que diz respeito à participação popular. No dia 27 de Dezembro, as pessoas acorreram aos locais de voto ordenadamente, esperando pacientemente nas filas a sua vez de votar, filas essas que em alguns lugares tinham vários quilómetros. Que a população queria uma mudança era evidente. Os quenianos sempre tiveram maturidade suficiente para não se deixar comprar ou encantar pelas promessas eleitorais dos políticos. Estes, foram sempre avaliados pela sua capacidade de honrar os compromissos eleitorais e pelo seu grau de honestidade. Portanto, havia que destronar os políticos corruptos e também os políticos da velha guarda. Fizeram isto precisamente com, entre outros, o ancião vice-presidente Moody Awori, Simeon Nyachae, eterno ministro em qualquer tipo de governo, e Nicholas Biwott, a eminência régia da era do ex-presidente Daniel arap Moi. Os partidos de velha data, como o Ford-K, o Ford-A e, sobretudo, o Kanu (a coligação que esteve no poder ininterruptamente desde a independência até 2002), foram profundamente redimensionados. Foi também pesado o juízo sobre o governo passado de Kibaki: 20 políticos, de entre os seus ministros e vice-ministros, perderam o seu assento parlamentar; entre esses Musikari Kombo, Raphael Tuju, Maina Kamanda: um massacre político.
Mais dura ainda foi a avaliação do grupo linguístico kalemjin do ex-presidente Moi: nenhum dos seus três filhos foi eleito; e assim parecia que Moi tinha acabado de ser uma figura politicamente relevante, pois tinha aconselhado os seus conselheiros de não votar no candidato do Movimento Democrático Laranja (ODM, no acrónimo inglês), Raila Odinga. Estes conselhos pareceram não ter surtido nenhum efeito. ODM assegurou quase metade dos assentos parlamentares: 99 em 222 assentos; o Partido de Unidade Nacional (PNU) de Kibaki, 43. O ODM-Kenya de Kalonzo Musyoka, 15. Os resto dos assentos foi dividido entre os outros 20 partidos presentes nas eleições.
A única esperança de Kibaki para governar com maioria era procurar um acordo com os lideres de ODM-Kenya e dos outros partidos menores. Assim sucedeu. Na formação do novo governo executivo, passou a vice-presidência a Musyoka e diversos ministros próximos deste último nos postos chave. Esta foi uma jogada politica condenada severamente por ODM e que provocou outros confrontos nas principais cidades do país.
Vários comentadores políticos ficaram surpreendidos pelas escolhas de Kibaki, que puseram em dificuldades o próprio presidente do Gana e da União Africana, John Kufuor, que tinha viajado para o país para mediação entre Kibaki e Odinga. Uma mediação por certo falhada. Tanto que Kufuor deixou o Kenya um dia antes do programado, com um fracasso nas mãos.
A meados de Janeiro, as esperanças foram confiadas ao ex-secretário geral da ONU, Kofi Annan. Mas nem Odinga nem Kibaki parecem querer conceder o que quer que seja ao adversário. A estratégia do presidente, ainda assim, parece delineada: envolver forças da oposição (mesmo de ODM?) no seu executivo. Comprar e, como consequência, abrir fendas na oposição, tem sido uma metodologia de governo usado sistematicamente no Quénia. Porém, o primeiro sucesso, pelo menos simbólico, teve-o Odinga, conseguindo eleger, no dia 15 de Janeiro, um homem do seu partido para presidente do parlamento queniano, Kenneth Marende, (105 votos contra os 101 de Francis Ole Kaparo, candidato de Kibaki). São muitos os actores presentes na cena politica para encontrar uma solução para a crise: diplomacia internacional, União Africana, igreja, personalidades de top em diplomacia, mediadores como o bispo sul africano Tutu, organizações não governamentais, etc. Todos se movimentam: é que o Quénia é muito importante para a segurança da região nos Grandes Lagos, seja económica e estrategicamente. A EU decidiu congelar os fundos até à solução da crise.

A Economia
A crise politica levou também a uma crise económica. Com os confrontos e desordem pós-eleitoral, os alimentos começaram a escassear nos supermercados. Assim como os combustíveis (nota do trad.: a querosene é muito usada no Quénia para cozinhar). Em Nairobi assistiu-se a longas filas de pessoas nos supermercados para procurar os bens de primeira necessidade, mas as prateleiras estavam vazias; o pão e o leite aumentaram de preço drasticamente. Os pequenos comerciantes dos bairros de lata fecharam. O fantasma da fome começa a aparecer. No bairro de lata de Korogocho em Nairobi a violência parou durante alguns dias porque as pessoas precisavam de procurar alimentos. É a única ocasião em que se pode dizer que a fome contribuiu para a paz!
A economia estava praticamente parada nos dias em que o país estava perto do caos. As industrias operavam nos 10 a 20 % das suas capacidades. As pessoas dos bairros de lata da capital e da classe operária dos bairros mais populares preferiam ficar em casa. Para Manu Chandaria, ex presidente da Aliança do Sector Privado do Quénia, tomando como exemplo o dia 2 de Janeiro, o governo perdeu 4 mil milhões de xelins (45 milhões de euros) em taxas, vistos e vários exercícios comerciais obrigados a fechar por causa da violência. A bolsa paralisou; as vendas de café e do chá foram adiadas. O xelim queniano perdeu valor nos mercados internacionais. Safaricom, o operador de telemóveis mas importante no Quénia, perdeu, nas duas semanas a seguir às eleições, cerca de 400 milhões de xelins. O problema económico afectou ainda toda a região dos Grandes Lagos (Uganda, Ruanda, Burundi, Sul do Sudão e o oeste da Republica Democrática do Congo), que se serve do porto de Mombasa para as suas importações. É significativo o título do semanário queniano The EastAfrican do dia 7 de Janeiro: «A crise no Quénia: a possibilidade de um colapso económico provoca preocupação nos países da Africa Oriental».
Matérias primas destinadas ao Uganda e Ruanda permanecem bloqueadas durante dias no porto de Mombasa; o petróleo nos depósitos de Kisumu da Kenya Pipeline Company (que representa 60% de todo o petróleo destinado ao Uganda) não pode ser transferido. Arun Devai, presidente do Conselho de Negócios da Africa Oriental, afirma que a violência no Quénia destroçou a economia de Kampala e Kigali e em breve também a do Burundi. A gasolina no Uganda subiu subitamente de um dólar para quatro dólares o litro.
No dia depois das eleições, o caos, a confusão, o medo e a sensação de abandono reinavam nas mentes das pessoas. A violência aumentava e espalhava-se. A gente simples, confundida, não sabia o que estava a suceder e o que reservava o dia de amanhã. Nenhum dos líderes falava, com a excepção de Raila Odinga. Kibaki, depois de empossado apressadamente (e, segundo alguns, já preparado antecipadamente), permanecia em silêncio. Os líderes religiosos também permaneciam calados; a igreja católica, nos seus representantes oficiais «ponderavam a situação».

A Igreja
Este era o momento em que a voz da igreja deveria fazer-se ouvir forte e claramente. Esta era a hora em que os bispos deveriam ter abandonado a diplomacia e adoptar a profecia, para dar uma palavra de esperança e deixar falar a voz da justiça. Este silêncio veio confirmar a percepção de que os bispos não são neutrais no campo político. O mesmo se diga também à igreja das várias denominações, aquelas que «não têm credibilidade para ter o papel de intermediários honestos», como escreveu, não sem polémica, The EastAfrican.
No dia 2 de Janeiro, a Conferência episcopal, através de uma carta do card. John Njue, arcebispo de Nairobi, expressou-se finalmente. Os bispos, condenando o clima de violência e de ilegalidade prevalecente no país, pediram clareza nos suspeitos tumultos e irregularidades no processo eleitoral e propuseram uma investigação judicial para rever a contagem dos votos. Pediram ainda aos dois lideres, Kibaki e Odinga, o diálogo, «para que a violência termine e se restabeleça a paz, baseada na justiça e na fraternidade.»
Estas afirmações reflectiam as palavras de uma carta da conferência dos superiores religiosos do Quénia dirigida no dia anterior aos bispos. Na carta realçava-se a grave culpa moral e graves lacunas legais dos responsáveis da Comissão eleitoral. Sobretudo, denunciava-se o clima de divisão étnica presente no país e a necessidade de trabalhar pela justiça, a paz e a verdade, «evitando que esta nação tão amada por nós caia no caos e no ódio étnico.» Mais ainda, chamava-se a atenção dos lideres políticos e religiosos da sua responsabilidade nesta crise, perguntando-nos até que ponto se sentiam solidários com o povo, que «se sente abandonado, isolado, confuso e desamparado». A carta convidava os bispos a adoptar, junto com os lideres políticos, a criação de um organismo internacional e independente, que ajudasse na solução da crise, propondo métodos adequados para um processo eleitoral livre das interferências dos partidos. Por fim, um pedido aos próprios bispos: «A nossa responsabilidade é de ser objectivamente críticos, muito parra além da fidelidade étnica ou politica».
Esta ultima afirmação punha o dedo na ferida: a divisão na base étnica e politica da mesma Conferência episcopal. Uma divisão que, tanto quanto um pode compreender, especialmente em tempos de crise como este, deveria antes não existir e deveriam mostrar-se unidos e com liberdade de falar com vozes proféticas. A presença de um organismo eclesial acima dos partidos, como a Nunciatura apostólica, deveria chamar os bispos ao seu trabalho pastoral e profético diante do povo e à sua obrigatoriedade moral de independência do poder politico ou da fidelidade étnica. «As pessoas têm a necessidade de ouvir uma mensagem de esperança e de alento dos lideres religiosos deste pais», escreveram os religiosos. Mas como pode ser isto possível se os mesmos lideres não falam com um coração livre?

Que perspectivas?
O EastAfrican teme que a situação de conflito entre Kibaki e Odinga se arraste por longo tempo. A este ponto, deveremos perguntar que farão as forças de segurança e o exercito. O medo é que a divisão étnica possa atingi-los (até agora parecem estar neutros). Primeiro, os dois contingentes deverão começar o diálogo sem pré-condições, conduzido na tolerância e na procura de consenso, segundo as melhores tradições africanas. Um diálogo possivelmente levado para a frente com a ajuda de mediadores independentes e que estejam acima do nível partidário.
A divisão étnica está a aumentar tragicamente. A impressão é a mesma de sempre: que os vários grupos lutam, não tanto por este ou aquele partido, mas pela própria sobrevivência. As etnias mais consistentes, os kikuyus e os luos, parecem ligados ao síndrome de assédio. A voz da razão parece apagar-se perigosamente, deixando espaço para a força do irracional.
Uma das condições exigidas por Odinga é voltar a realizar as eleições. Mas, eleições a curto prazo não são realistas. O clima é ainda muito tenso e sê-lo-á ainda por 3 ou 6 meses. Se eu fosse um habitante de Kibera, Eldoret ou Kisumu, só o facto de acenar a eleições já me aterrorizava. As pessoas não estão preparadas para voltar às urnas a curto prazo. E, mais importante ainda, onde iriam votar as centenas de milhares de cidadãos que foram forçados a deixar as suas casas e zonas de residência, sem sequer saber quando poderão voltar?
Mas existem também razões jurídicas e legais contra esta hipótese. O caos pós-eleitoral foi provocado também pela debilidade do poder judiciário e da sua falta de independência em relação aos políticos. Poderá ser uma saída uma nova constituição – uma das promessas de Kibaki (não cumprida) de 2002 e de Odinga hoje – que limite os poderes do presidente em exercício, favorecendo a independência do poder judiciário e do poder legislativo. Uma nova constituição, porém, em que seria necessário uma maior contribuição de todas as forças politicas e de um governo de unidade nacional, representativo de todos os âmbitos políticos, em que a sua tarefa principal seria elaborar uma nova carta constitucional.
Quem tem pago a factura maior desta crise são os habitantes dos bairros de lata e os pobres confinados ao interior do país, não certamente os políticos e os ricos habitantes dos bairros senhoriais de Karen, Muthaiga ou Parklands (não obstante pertencerem a grupos étnicos diferentes). Nas muitas zonas ricas de Nairobi a vida decorre normalmente. Os pobres, além de não terem nenhuma vantagem de quem está no poder, são regularmente e vergonhosamente usados pelos políticos pouco escrupulosos. Há uns dias, num blog local, li que o Quénia é habitado por duas grandes tribos: «a dos pobres e a dos ricos; a primeira supera numericamente a segunda na ordem dos 10 por 1».
Tradução: Filipe Resende

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1 Comments:

At 07 fevereiro, 2008 11:54, Anonymous Anónimo said...

obrigado pelas noticias e a esperança que deixa...continuamos a rezar pelo nosso querido quénia.

 

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