sábado, agosto 11

Uma rádio no Sudão pela Paz

José Vieira, aliás, Abuna Josef, "nosso pai" do sul do Sudão
Público - 10.08.2007, Alexandra Lucas Coelho

Entre a Montanha dos Espíritos e o rio Nilo fica Juba, cidade do sul do Sudão onde um missionário português está a lançar uma cadeia de rádios. Em Lisboa acaba de lançar uma plataforma de ajuda ao Darfur.
Em oito anos de Etiópia, o padre comboniano José da Silva Vieira ficou fluente em guji, uma das línguas locais. Mas em Juba, no sul do Sudão, ainda fala sobretudo inglês. Só lá está desde Dezembro. O dialecto local é o "Juba arabic", e nessa variante do árabe o nome dele passou a ser Abuna Josef, ou mais simplesmente Abuna Joe. Abuna quer dizer "nosso pai".
Todas as manhãs, Abuna Joe, 47 anos, português da aldeia da Aliviada, Cinfães, Douro, onde só havia três famílias - a de um ferreiro, a de um GNR e a do seu pai, trabalhador da construção civil - sai da sua casa em Juba e vai para a Rádio Bakhita, primeira de uma cadeia de oito que os missionários combonianos querem desenvolver no sul do Sudão. Regressa a casa já de noite, e por vezes a pé, uma caminhada de 20 minutos por terra batida e entre as palhotas que dominam a maior parte desta cidade nas margens do Nilo. Desde o acordo de paz assinado em Janeiro de 2005, "vive-se com mais segurança em Juba do que em Nairóbi", diz o sorridente missionário, agora de férias em Lisboa, onde esta semana lançou uma campanha a favor do Darfur. Bakhita quer dizer "abençoada". Uma rádio declaradamente católica, como 60 por cento da população de Juba, que é esmagadoramente cristã (aos católicos somam-se 20-30 por cento de anglicanos) e negra (cerca de 90 por cento). Transmite em inglês e em árabe, e quer contribuir para solidificar a paz, num país dividido entre o norte árabe e muçulmano e o sul negro e cristão, com um genocídio a acontecer no Darfur. "O meu trabalho de missionário é preparar as pessoas para daqui a cinco anos ficarem com o projecto nas mãos. Um dos objectivos da rádio é levar à reconciliação. Durante a guerra, o governo sudanês usava os homens do Darfur para lutar contra o sul, e quando a crise rebentou no Darfur houve um certo regozijo no sul por também o Darfur estar a sofrer agora às mãos dos árabes. Para uma rádio cristã, este tipo de mentalidade não faz sentido. Se o Darfur está a sofrer, o sul também sofre."Abuna Joe, aliás, José Vieira, é o director de informação desta rádio-mãe, e tem estado a aproveitar o Verão lisboeta para um estágio na Rádio Renascença, a ganhar tarimba em noticiários de rádio.
No Sudão, só pode andar pelo sul, a parte do território para onde possui visto. Quem está no Darfur já há dois anos é outro missionário comboniano português, Feliz da Costa Martins.A Rádio Bakhita - que tem estúdios "em tijolo-burro, para tentar isolar, porque não há a lã de rocha que aqui é usada para isolamento, a lã de Juba é de camelo e de ovelha..." - emite "programas de formação humana e religiosa", sobretudo para jovens e mulheres, que actualmente constituem a maioria da população. "Porque a maior parte dos que morreram na guerra eram homens."E de que falam estes programas, no seu intuito reconciliatório? "De recenseamento, partilha de poder e de riquezas como o petróleo, da diferença entre a sharia [lei islâmica] e a lei comum, da mudança do dinar, que era árabe, para voltar à libra sudanesa..."Agora já tem Internet, mas no começo "fazia download" aproveitando o wireless da ONU, duas horas debaixo de uma árvore para um quarto de hora de notícias..."Entre a montanha e o rioClicando na pasta "Juba", no seu portátil, o padre José Vieira, aliás, Abuna Joe, mostra barracas de tijolo, canas, palha, zinco. "Juba é uma cidade de palhotas e algumas construções que aguentaram a guerra." Nas vistas gerais, entre as árvores, vêem-se as palhotas cobertas por plásticos azuis, da ONU. "Não é preciso fazer casas muito complicadas porque é quente, 48 graus é normal. É preciso é ter cuidado com a cobertura, por causa da chuva e das cobras."Em quase todas as imagens aparecem motas pelos caminhos de terra batida. "São o meio de transporte por excelência. São o táxi, levam as pessoas, os carregamentos." A banda da polícia toda aperaltada, rapazes e raparigas escuteiros, a catedral, o mercado, sempre em terra batida. "Os ovos são a base da alimentação, eles gostam muito de ovos cozidos. E comem farinha de milho com esparregado. Tudo importado, ovos e tomates, por exemplo, vêm do Uganda." Também se vêem bancas de peixe seco, alguns demasiado grandes para terem vindo do Nilo, acha Abuna Joe. Numa das fotografias vê-se como Juba é plana, entre a grande montanha dos Espíritos e o Nilo, rio essencial, "para lavar roupa, para se lavarem a eles, para transporte, pescaria..."
Hospital é o que está "a ser recuperado por chineses, 555 camas, oito médicos" e "o grande problema de Juba é o lixo". Não há recolha. "Vão queimando. Daí haver crises de cólera anuais, sobretudo durante as chuvas."Continua a haver muitas armas, "mas está a ser feita uma recolha". Mais difícil recolher ódios, medos, traumas. "As pessoas dizem: "No passado sabíamos quem eram os nossos inimigos, eram os árabes." Agora, os dinkas, que são a tribo maioritária do sul, comportam-se como os árabes. Não respeitam terrenos, espaços. Estão a criar muitos anti-corpos no Sudão."Que dificilmente será um país, crê o padre José Vieira. "Se houver eleições, acho que o sul vai lutar pela independência. Tem petróleo, tem minério, tem rio. Faz sentido serem dois países diferentes. Os ingleses criaram uma fronteira artificial."

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