quarta-feira, dezembro 3

Viajando até terra Pokot!

Deixando Nairobi…
24 de Novembro de 2008. 8h da manhã. Depois de presidir à eucaristia, pedindo a bênção do Senhor para a missão que hoje iniciava, saí de Nairobi com o P. Mariano, o actual provincial dos MCCJ no Quénia. Esta viagem é um marco importante na minha história vocacional. Marca o regresso a um povo e a um lugar que Deus elegeu para mim. Marca a realização de um sonho de vários anos. Sinceramente não sei bem o que é que Deus espera de mim ou que me pede neste lugar, junto deste povo e junto com esta comunidade missionária. Mas algum dia alguém disse: “a melhor missão do mundo é aquela a que Deus me enviou!” É certo que foi também um desejo pessoal. Não necessariamente a missão onde ser enviado, mas o tipo de trabalho junto com os Pokot, neste país. Porém, este chamamento faz parte de uma vocação já antes assimilada na minha vida. Durante o escolasticado senti que Deus me chamava a trabalhar junto com este povo. Um povo de Pastores. Um lugar semi-árido. Onde a electricidade pública está ainda a caminho (brevemente!) e onde as comunicações por telemóvel são ainda muito recentes. Entretanto, fiquei maravilhado em ver que os cabos da rede eléctrica pública chegam já a esta vila Pokot, Kacheliba. Porém, a ligação à electricidade não é ainda uma realidade. Ainda virão muitos testes dias com electricidade e outros sem ela. Porém, aqui vamos avançados: a electricidade que aqui existe na casa da missão é gerada por energia solar…
Depois de 480km, chegamos a Kacheliba, pelas 5,30h da tarde. Cerca de 9 horas de viagem a uma média de 50km por hora em estrada alcatroada, mas também muito má por muitos km. Os últimos 40km são em terra batida, descendo cerca de 600mt em altitude pela encosta da montanha situada perto da vila de Kapenguria e Makutano. A temperatura aqui costuma ser elevada devido a que a missão fica num vale, aliás como a própria vila de Kacheliba.
Esta vila fica situada a cerca de 1200mt de altitude e foi até há poucos meses a sede de concelho desta região do distrito de West Pokot. Neste distrito vive o povo Pokot, pastores por natureza. É atravessada por um rio, o Swam ou Turkwel. Um rio que mesmo nesta altura do ano (a mais quente e seca!) continua a levar alguma água no seu leito. Água da cor da terra, é certo, mas é água de todas as formas. A água, nestas paragens quentes e secas, é um tesouro! Aqui se pode ver os animais a saciar a sede, homens a tomar banho, mulheres a lavar a roupa, crianças e adolescentes a pescar e ainda pessoas a levar água para suas casas…
Nesta missão vivem três outros missionários, dois italianos e um alemão. Todos padres missionários combonianos. Desta vez apenas pernoitamos, eu e o P. Mariano, o Superior Provincial dos Combonianos aqui no Quénia. Sairíamos, no dia seguinte pela manhã em direcção a outra das nossas missões: Amakuriat, bem mais a norte, cerca de 100km.
Na missão de Kacheliba trabalham também as Irmãs Combonianas. Tomam conta sobretudo das escolas e do dispensário. Porém, estão neste momento a deixar esta missão – falta de pessoal para poder levar para a frente todos os compromissos… Espera-se a vinda de uma outra congregação de irmãs missionárias.
Também a missão tem electricidade a partir de um sistema solar. Tecnologias postas ao serviço da missão. Espera-se que a electricidade pública chegue a qualquer momento, uma vez que toda a instalação de cabos eléctricos está praticamente feita. Mas como dizemos por cá em língua swahili, Mungu anajuwa (Só Deus sabe!) quando a electricidade pública será uma realidade. Entretanto, para as necessidades básicas de energia da casa da missão, os raios solares abundantes neste lugar são transformados em energia eléctrica.
Primeira eucaristia na missão de Kacheliba
Logo na manhã, às 6.45h, rezamos todos juntos a oração da manhã juntamente com a celebração da eucaristia. Neste dia duas comunidades das irmãs combonianas tinham um encontro de trabalho. Por isso éramos bastantes na celebração da eucaristia. Eu apenas concelebrei. Foi o superior da comunidade, o P. Guiducci a presidir à eucaristia. Senti naquele momento uma alegria grande por estar ali, finalmente, na missão que Deus me indicou. Ofereci ao Senhor tudo o que sou e tudo o que Deus me deu como qualidades para serem postas ao serviço deste povo e desta missão que Deus me confia.
Depois do pequeno almoço, saímos rumo a Amakuriat. Fizemos um desvio pela missão de Amudat, que fica já em território do Uganda, com quem o Quénia faz fronteira. Apesar de ser uma missão entregue aos padres diocesanos do Uganda, esta terra continua a pertencer à terra dos Pokot. Como pode um povo estar assim dividido entre dois países? Pois são os erros dos passado… erros dos europeus no traçado das fronteiras a régua e esquadro no séc. XVIII, sem ter em conta a realidade destes povos, então quase desconhecidos! No caminho, enfrentamos as tropas ugandesas. Regressavam de resgatar centenas de cabeça de gado que tinha sido roubado pelos inimigos dos Pokot (os Karimojong) uns dias antes. Fomo-nos cruzando ao longo da estrada com vários grupos de soldados. Param-nos para pedir água. “Vimos da operação e caminhamos sob este sol escaldante há 2 dias”, disseram-nos. Infelizmente, a estratégia do governo ugandês em terminar com estes ataques entre inimigos através da colocação de tropas no local não é eficaz. Ir roubar gado ao inimigo está no sangue destes povos há centenas de anos. Não chega apenas uma operação militar. É necessário educar as pessoas. Mas isso, é algo que tem mais custos. Construir escolas, pagar professores, etc. sai muito mais caro… Infelizmente esse é um campo de trabalho muitas vezes deixado só a cargo dos missionários.
Amakuriat: “matar saudades missionárias”
Chegamos a Amakuriat, a missão mais a norte dos Missionários Combonianos em terra Pokot para a hora do almoço. Fiquei surpreendido com o aumento de casas e edifícios com telhados de chapa de zinco. Tinham passado cerca de 7 anos desde que aqui tinha estado desde a última vez. Uma outra novidade foi o facto de aqui existir uma rede de telemóvel a funcionar. Aqui, onde nem sequer existe uma rede eléctrica pública nem sequer a rede de telefone fixa. De facto, a globalização é algo de extraordinário. Foi também entretanto construída uma escola secundária que tem neste momento cerca de 400 alunos.
Nestes dias que passei nesta missão já por mim conhecida, pude dar umas voltas saudando e reconhecendo também pessoas que tinha deixado há 7 anos. Hoje mesmo, 27 de Novembro de 2008, fui com o Irmão Friedbert, missionário comboniano a trabalhar nesta missão, a um lugar chamado Nauyapong, que fica já no limite com a tribo vizinha, os Turkana. A missão está ali a construir mais umas salas de aula na escola primária. A escola alberga mais de 300 estudantes que têm que pernoitar ali, uma vez que a maioria vem de lugares distantes. Os rapazes que são cerca de 120, dormem todos num único edifício que não terá mais de 25mt por 15mt de largura! Mas ter a oportunidade de vir à escola em terra Pokot é um luxo que nem todos podem gabar-se!
No caminho de regresso, já a poucos km do centro da missão, parámos numa pequena capela onde também se está a iniciar a escola primária. Aí encontramos um jovem que não teria mais do que 16 anos. Tinha casado no dia anterior com a sua primeira mulher. Tinha pago pela sua esposa 30 vacas como dote. Olhando para o lado vi também uma jovem com mais ou menos a mesma idade. Reparei que trazia a pulseira que só as mulheres casadas podem usar. Perguntei-lhe se era casada. Logo respondeu que sim. Não tardou que outras mulheres que ali estavam me olhassem e oferecessem também uma das jovens ali presentes para casamento! Sem querer ficar mal e entrando na brincadeira, perguntei quantas vacas desejariam para o dote, ao que me responderam 50! Lá lhes fui dizendo que era padre missionário, que não casamos e muito menos temos vacas para pagar como dote.
Hoje era também dia de mercado. Dia que traz muita gente ao centro de Amakuriat e por isso perto da missão. Um dos lugares especiais nos dias de mercado é o lugar onde as pessoas se juntam para beber a cerveja tradicional. Chamam-lhe “busa”. Trata-se de uma cerveja feita de milho fermentado que até nem traz muito álcool. Mas por pouco que seja é suficiente para por esta gente contente. Fui até ao local onde costumam beber. Segundo informações que tinha era junto ao rio, uns 500mt abaixo da missão. Porém, tinham-se movido. A polícia tinha andado atrás destas pessoas por ser um negócio ilícito. Não é costume ver um msungu (um homem branco) naquelas paragens. Por isso não faltavam os miúdos à minha volta… brinquei com eles mostrando-lhes as imagens que entretanto ia tirando com a máquina de filmar. Perguntei-lhes onde estavam as pessoas, o mercado da cerveja, “pombe’s place”. Fizeram questão de me acompanhar até ao local. Fui-me aproximando e fui vendo centenas de pessoas, mulheres a vender e também a beber. Homens às dezenas, juntos ali a passar o tempo e na amena cavaqueira. Já se percebia algum mais enfrascado que outro! Acompanhado por alguns jovens aventurei-me a dirigir-me em swahili a um dos anciãos que ali estavam. Em questão de minutos foram mais de 15 as pessoas ali à minha volta a falar com este senhor. Foi-me dizendo que tinham casado com mais de 10 mulheres… talvez exagerando um pouco! Perguntei-lhe quantos filhos tinha. Respondeu-me que as suas mulheres tinham tido mais de 100 filhos. As suas mulheres… sim porque um homem pokot, por natureza não liga muito aos seus filhos. Se são filhas melhor! Quando elas se casarem conseguirá mais animais para a sua “conta”. Sim porque em terra pokot, aquilo que vale realmente são os animais. É como ter dinheiro no banco nos meios mais desenvolvidos. Aqui ter muitos animais e muitas filhas é sinal de que se é um homem rico. Disse-me este homem que as suas mulheres lhe tinham dito bem da igreja e que também era bom ter os filhos na escola. Por isso mesmo enviava as suas mulheres à Igreja e os seus filhos à escola também. Fui-lhe dizendo que era bom que assim procedesse, mas que a Igreja não é só para as mulheres e as crianças. Que também os homens têm lá um lugar! Tradicionalmente e talvez também devido a erros de evangelização do passado, não é muito comum ver os homens na igreja.
Por muito mau que seja o hábito de beber, para muitas mulheres que ali vêm vender os poucos litros de cerveja tradicional fermentados por elas em casa, é a única maneira de conseguir ter mais alguns rendimentos para alimentar os seus filhos. O pai, em muitas situações, é por e simplesmente um ausente para tudo!
Enfim… foi um momento de realmente poder ali dar umas palavras de alento e ao mesmo tempo de intervir numa situação em tudo nada famosa. O hábito de beber não ajuda em nada uma sociedade já de si bastante fechada e pouco aberta à novidade e à mudança. É por isso necessário também estar nestes lugares e dar testemunho daquilo que Jesus veio indicar-nos: “Vim para que tenham vida, e vida em abundância!”
Missão de Amakuriat, Quénia – West Pokot, 25 a 27 de Novembro 2008

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