domingo, maio 24

Regresso em cheio!

Eis-me de regresso à terra Pökot – Kacheliba! Depois de 4 meses de estudo intensivo da língua kiswahili na Tanzania, eis que é chegado o momento de me instalar definitivamente na missão.Poderia dizer que os meus dois primeiros dias deste regresso foram um aperitivo bastante apaladado: eucaristia debaixo das árvores, crianças a aprender a ler e a escrever debaixo de outras árvores, ser bons samaritanos e ajudar a polícia a desenvencilhar-se da sua pick-up atascada no rio, furo no nosso carro, cruzar o rio a pé antes de nos aventurarmos com a pick-up…, enfim… aquilo a que chamaria a vida de um missionário aventureiro no tempo das chuvas por estas paragens. Mas a Missão é muito mais do que isto…

Regressei a Kacheliba no dia 13 de Maio. Não! Não o escolhi de propósito. Apenas e tão somente aconteceu. Alguns dos nossos jovens lusitanos costumam dizer “correu mal” quando algo não saiu da forma esperada. Bom… no meu caso diria “Não podia ter corrido melhor!” Talvez (ou será mesmo isso) Deus queria dizer-me que a sua bênção por intercessão de Maria estaria sempre comigo. Senti que Maria chegava comigo a Kacheliba nesse dia. E por isso não devo temer seja o que for. Não fosse eu um bom portuga e devoto de N. Sra. de Fátima.
O meu superior e colega de missão, P. Giancarlo Guiducci já estava à minha espera em Kitale. Esta á a cidade mais próxima da nossa missão onde costumamos ir às compras. Fica a 80km de Kacheliba. 40 dos quais em estrada alcatroada. Os restantes 40 são em terra batida. Mas… encontrei a estrada muito melhor do que a deixei em Janeiro passado. Aqui trabalhou-se durante estes meses.
Surpresa das surpresas… à minha chegada o meu colega P. Hubert tinha preparado um bolo para celebrar a minha chegada. Digamos que um pedacito de bolo aqui nestas paragens é de facto uma raridade. Nesse dia também jantámos com a comunidade das irmãs franciscanas, a nova congregação que entretanto veio trabalhar aqui em Kacheliba depois da partida das Irmãs Combonianas em Março passado. É uma comunidade pequenina a das irmãs: duas irmãs africanas, a Irmã Agnes e a Irmã Ciprian. Uma é a encarregada do dispensário ou Centro de Saúde aqui da missão. A mais jovem, a Irmã Ciprian dá aulas na escola primária da missão. Desde logo me senti em casa. A Mama Tereza, a senhora que ajuda as Irmãs nas lides da casa, lançou-me um sorriso de alegria do meu retorno de tal forma que logo percebi que era bom sentir-me em casa de novo.
Logo pela manhã do dia seguinte saí com o meu colega P. Hubert. Fomos visitar uma capela que foi começada há bem pouco tempo, há poucos meses. Tão poucos que ainda nem sequer se prevê a construção da capela. Graças a Deus, na nossa paróquia podemos chegar a todas as capelas com a pick-up. Ainda que para isso algumas vezes seja necessário sair do carro e com a machada, cortar uns arbustos ou árvores que entretanto cresceram no meio do caminho. Outras vezes, no tempo das chuvas, temos que atravessar rios sazonais. Desta vez não fomos nós a atascar-nos no rio… já alguém lá estava a “dar de beber aos cavalos” (do jipe)! Nada mais nada menos que o carro da polícia. Escoltavam um outro jipe das Nações Unidas para chegar até uma escola a menos de 1km do rio. A UN anda a fazer um levantamento das escolas que recebem ajuda para a alimentação das crianças. Há que arregaçar as calças (as mangas não pois aqui anda-se sempre de manga curta!), tirar as sandálias e meter-se ao riacho para ajudar a resolver o assunto. Mais ou menos tempo decorrido, sempre se arranja maneira de retirar de lá o jipe. Fomos à nossa vida e chegámos à nossa capela com o nome bastante simples de Katukumwok. Fácil de pronunciar não? Debaixo de umas árvores, estava uma cadeira e um banquito. “Podemos celebrar aqui?” – perguntou o catequista. “Claro que sim!” – respondemos de imediato. “Uma mesa e outra cadeira estão a caminho” – retorquiu ainda o catequista. Mais tarde vi que a mesa tinha sido transportada à cabeça por uma das senhoras desde uma distância de pelo menos 2km!
A uns metros dali estava a escola pré-primária… claro está também debaixo das árvores. Contei as crianças: 23! “Mas são muitas mais” – disse-nos o professor. “Os outros estão com os pais nos campos! Por isso não puderam vir. Estão com os pais a ajudá-los a cultivar os campos!” Crianças de 4, 6, 7 anos? – pensei. É verdade! Estamos no tempo das chuvas e como aqui as chuvas são também escassas e incertas muitas vezes, há que aproveitar o tempo e as chuvas para plantar um pouco de milho e de soja. Os Pökot, por natureza e tradição, não são agricultores. São pastores. Mas há já bastantes que começaram também a cultivar terrenos. Um dos frutos de 30 anos de trabalho missionário também nestas paragens. Foi bonito por isso ver pelo caminho fora as pessoas nos campos. Sente-se a esperança no ar, a esperança de poder recolher algo dos campos. A alegria do dom das chuvas, dádiva de Ilat – o espírito das chuvas – um dom maior do Deus Töroröt, Deus Único em língua Pökot.
Voltamos às crianças da escola pré-primária. Quiseram presentear-nos com uma canção a Maria. Ao princípio estavam um pouco envergonhados. Raramente vêem o missionário e muito menos um branco. Lindo! Um ritmo e uma cadência no canto que deixariam algumas bandas rock envergonhadas!
Começamos a eucaristia. O meu colega celebra a missa em língua Pökot, mas tudo o resto é em língua swahili, depois traduzida para Pökot pelo catequista. Sim… é verdade! A língua kiswahili em vários lugares da nossa paróquia/missão não é suficiente. Especialmente as senhoras e os anciãos, que não foram à escola, falam apenas o Kipökot. Sim! Adivinharam… dentro de alguns meses tentarei também aprender o Kipökot… outra língua mais! Apenas e só que esta é bem mais difícil que o kiswahili. Veremos!
É normal que as pessoas aqui celebrem a missa com todo o à vontade e também com tudo aquilo que são: simples e puros, celebrando a louvando a Deus Töroröt com toda a alegria e simplicidade. As mães com o seus filhotes ao colo, muitas vezes até a serem amamentados, seguem as palavras do meu colega P. Hubert como alguém que deseja saber mais e mais sobre o amor de Deus por eles e por toda a humanidade. É confortante saber como, mesmo no meio de tanta simplicidade, há nestes corações dos Pököt uma ânsia de conhecer e saber mais sobre Deus, sobre Jesus, sobre a nossa vida voltada para Ele. Na Europa e no mundo assim dito “civilizado” Deus já passou de moda… já não precisamos dele (pelo menos assim pensam alguns!). Aqui, conhecer Deus e escutar como Ele nos ama mesmo nas mais degradantes situações, é um privilégio que muitos Pököt não têm acesso.
No regresso à missão, já a meio da tarde, pude também observar a apanha dos “kumbekumbe”, uma espécie de insectos que são um dos melhores petiscos cá destas terras no tempo das chuvas. Normalmente nascem e crescem dentro dos formigueiros. Há toda uma técnica especial para os apanhar. Secam-nos ou torram-nos e depois serve-se frio com uma pitada de mais nada. Assim mesmo. Crus. Tenho que experimentar um dia destes… pode ser que me saibam a saudosas moelas ou pataniscas!
Regressámos à missão sem outras complicações, graças a Deus. Pelas 4 e tal da tarde tomamos o nosso almoço quase como nos casamentos… mas olhai que aqui não houve casamento nem aperitivos em casa da noiva antes da cerimónia… Houve sim alegria! Pelas 6 da tarde a capela estava quase cheia na celebração da missa com os jovens da escola secundária para a missa que celebramos com eles todas as quintas-feiras. Uma alegria e jovialidade como poderão imaginar.
O dia não podia terminar sem outra situação do dia a dia da missão. Todos os dias o gerador da missão é ligado pelas 7 da noite até às 9 e pouco uma vez que aqui nesta missão ainda não temos electricidade pública. Temos cerca de 300 jovens da escola primária e secundária da missão nos internatos. É necessário por isso prover-lhes com alguma luz para o estudo nocturno também. Nesse dia o gerador não queria começar… levamos o carro para ligar a bateria pensando que poderia ser da bateria do mesmo gerador. Nada! Verificámos tudo e nada… bom tudo não… quase tudo! Afinal era um dos fusíveis que estava queimado. É que aqui não temos as páginas amarelas para ir procurar um técnico para nos resolver o problema… ou o resolvemos nós ou então ninguém o resolve… O “busca-busca” do problema não foi à luz da vela mas sim à luz das pilhas ou foxes como assim chamamos na minha terra. Só faltava a música psicadélica como nas discotecas…
No dia seguinte dirigimo-nos para a outra missão comboniana nesta região Pökot. Encontramo-nos com os outros missionários e missionárias para um dia de retiro. Escusado será dizer que o carro vai sempre cheio de pessoas. Há sempre gente a querer movimentar-se e a pedir boleia. Felizmente hoje em dia já há alguns transportes públicos mas algumas pessoas não podem sequer pagar a viagem assim que se dirigem aos missionários para pedir boleia. Levamos connosco um dos nossos catequistas, dois estudantes combonianos que farão a sua experiência missionária nessa missão, e mais algumas pessoas. São cerca de 120km em estrada de terra batida… às vezes, no tempo das chuvas, não tão batida quanto seria desejável, pois em vários momentos tivemos que sair fora da estrada-picada para fugir à lama e poças de água que nos poderiam deixar atascados. Felizmente conseguimos passar todos os possíveis problemas com maior ou menor facilidade. A um dado momento chovia que “Deus a dava”! Pobres pessoas que iam atrás na pick-up. Tivemos que parar para recolher-nos por uns momentos numa das cabanas perto da estrada. Chegámos até bem perto da missão. Mas havia um último obstáculo: atravessar o rio que levava alguma água no seu leito, suficiente para nos fazer esperar uma meia hora. Atravessámos o rio várias vezes a pé. É a primeira coisa que tem que ser feita ao queremos atravessar um rio. Tirar de novo as sandálias, arregaçar as calças até acima do joelho e meter-se rio dentro. Eu e o meu colega Hubert, assim que entrámos no rio a pé, logo concordámos que haveria que esperar para ver se o rio baixava…
Entretanto tivemos tempo de ainda pôr no devido lugar o pneu que tínhamos furado uns quilómetros antes… mas os furos aqui são “tão naturais como a sua sede” – como dizia a publicidade.
Por fim, achamos que poderíamos atravessar… já depois de mais de meia hora de espera. E lançamo-nos ao rio… sempre numa incerteza mas com a certeza suficiente de que poderemos atravessar sem muitas dificuldades. Pulo aqui e pulo acolá, lá conseguimos atravessar para alívio dos que vinham connosco, bem como nosso também.
No dia seguinte, o retiro foi oportuno para agradecer a Deus pela boa viagem que tivemos… por nos ter permitido chegar bem a Amakuriat, o nome da outra missão comboniana em terras Pökot. Aqui está mais uma comunidade missionária comboniana entre o povo Pököt: 3 sacerdotes e 4 irmãs missionárias combonianas.
Legendas fotos:
Foto 1: Crianças referidas no artigo da escola debaixo da árvore em Tandopos
Foto 2: Mães Pokot referidas no artigo na comunidade de Tandapos
Foto 3: Crianças Pokt durante a missa em Tandapos
Foto 4: Escola primária com 8 salas de aula em Lokornoi

Kacheliba, terra Pökot (Quénia) – Maio 2009

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2 Comments:

At 24 maio, 2009 21:01, Blogger antrophistoria said...

Hola!!

Es la primera vez que visito tu blog y me ha parecido muy interesante. Estás invitad@ a visitar Antrophistoria. Seguimos en contacto.

Un saludo.

 
At 25 maio, 2009 21:41, Blogger A. Brás said...

Olá Filipe

Respirei fundo e sorvi o teu texto de uma só vez!
Estou um pouco extenuado (Lol) pois é um bocadinho longo. Mas valeu a pena!
Creio que uma das coisas mais belas e que mais agradecemos na pessoa do missionário é que ele "nos narre a missão". É o que tu nos vais fazendo aqui no teu "Mungu ni Upendo".
Obrigado pela partilha. E, já agora, que encontres sempre, ao chegar à base, um missionário da mesma família carismática, como tu, com um bolo preparado para adoçar a vida e retemperar as forças. Um gesto tão bonito de acolhimento. A Missão também está feitas destes pequenos gestos.

Abraço grande e continuação de boa missão, agora já na posse de uma importante ferramenta - o Kiswahili - que facilita e possibilita ainda mais a inculturação.

Abraço grande

P. Albino Brás imc

 

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